sexta-feira, 20 de agosto de 2010
Pequena garota do espelho:
Há uma pequena garota dentro do meu espelho. Não pergunto mais quem ela é, cansei. Mas gosto de ficar ali a olhando, e ela sorri. Um sorriso vago talvez, mas sei que gosta da minha presença. Ela tem cabelos em uma cor tão estranha, lembra-me ferrugem. São médios, um pouco abaixo dos ombros. Mas não combinam com a sua sobrancelha preta. Seu corpo é míudo, do tamanho de um abraço. Mas ela não chega a ser magra. Suas mãos são pequenas, e estão fechadas em punhos. Já não tento entender mais. Ela tem um jeito de se vestir engraçado. Hoje está com um vestido curto com desenhos delicados, e uma meia-calça azul. Sempre a vejo de azul, deve ser sua cor favorita. Eu fico procurando vestígios pra ver se a conheço, mas nada. Sempre me arrependo quando paro para olhar seu rosto. Sua pele é de um pálido esquisito. Dá pra ver que o Sol já brilhou e deixou marcas ali, que hoje estão tão desbotadas que ninguém pode chamar de bronzeado. Sua pele parece ser tão frágil, tão frágil. Ela poderia ser feita de porcelana, cristal, que ninguém duvidaria. Eu queria poder tocá-la. Abraçá-la. Devia ser muito frio ali. Mas eu nunca poderia realizar tal sonho. Eu não conseguia pensar em maneiras de tirá-la dali, e devolvê-la a vida. Finalmente, eu olhei para o local nela que eu mais temia encarar. Existiam olheiras estranhas, ela deve estar cansada de permanecer congelada ali. Seus olhos são pequenos, mas profundos e terrivelmente negros. E há uma história neles. Uma canção de ninar, um adeus. Se eu prestasse bem atenção, dava pra ouvir as notas suaves do piano ao fundo. Quando ela voltava seu olhar para mim, eu poderia dizer que seu coração facilmente se parte em dois. Eu gostaria de poder fazer alguma coisa, porque agora há lágrimas pesadas escorrendo melancolicamente pela sua face. Se eu pudesse, eu diria a ela que não há o que temer, e que os medos dela são totalmente infantis. Queria poder lhe dizer que a dor que ela está sentindo e a solidão se apagariam, e que ela descansaria em paz pelo resto dos seus dias. Mas no mesmo momento em que eu notei que nada funcionaria tão facilmente, ela me olhou ardil mente, atroz, com as mãos ainda fechadas em punhos. E tão rápido que eu nem senti, o vidro gelado rachou-se em minhas mãos, e jorrou sangue nos pequenos cacos que caiam no chão. Eu olhei para o chão, vi o reflexo em um caco e sorri. Eu sabia que estaria ligada para sempre aquela pequena garota de agora em diante. Sabia disso. Abracei-me, manchando o curto vestido de sangue, mas sentido um súbito calor, sentido a pele ruborizando de alegria, as bochechas queimando. Então, eu sai do pequeno cômodo, tranqüila, feliz, com meu coração remendando-se automaticamente, e deixando através dos meus pequenos passos, os rastros de sangue e passado pelo assoalho de madeira antiga.
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